domingo, 21 de março de 2010

E QUANDO TUDO PARECE DAR ERRADO?

Entre um mau dia e um boa-noite, uma crônica





Numa dessas noites, quando começava adormecer, o telefone tocou. Atendi-o em estado de sonambulismo e, sem que houvesse tempo para eu me pronunciar, ouvi o seguinte desabafo:



“Há dias em que acordamos com o chamado ‘pé esquerdo’. Para começar, a noite parece ter passado num piscar de olhos; ou mellhor, o fechar e o abrir de olhos parecem tão curtos que não são suficientes para o descanso... O sol não brilha, o que reforça ainda a aparência de madrugada.. As sandálias dão a impressão de terem caminhado sozinhas, os pés não as encontram, mas encontram a caneladas, os móveis espalhados pela casa.



Abre-se a despensa e descobre-se que o café acabou. O café instantâneo, guardado exatamente para esses momentos, está vencido. Só resta tomar um chá o que ajudará a acalmar... Enquanto a água ferve, um banho frio para despertar de vez, não por opção, mas por vontade do chuveiro que resolve queimar.



Na saída, desatento, pisada no cocô do cachorro. Voltando para trocar o sapato já se acumularam 5 minutos de atraso que ocasionarão 20 ou mais. Bem à porta, um caminhão de entulho resolve estacionar: mais alguns minutos até encontrar o motorista para tirar o caminhão e, finalmente, se poder sair com o carro.



Sincronicamente todos os semáforos amarelam exatamente na vez do carro passar e, para não fechar o cruzamente, se é educadamente levado a esperar até que aqueles demorados segundos se findem. Carros quebrados colaboram ainda mais para que o atraso aumente.



Com quase meia hora de atraso chega-se ao serviço, gastam-se ainda mais uns minutos para conseguir estacionar... Ao pegar as coisas do carro, a descoberta de que os disquetes com o material que iria trabalhar não foram levados, vários documentos que já estavam prontos deverão ser refeitos.



Hora do almoço, uma fila interminável no restaurante; na saída, uma chuva inesperada, típica de verão. Resultado: roupa molhada, futuro resfriado, além de ficar preso no elevador devido a queda de energia.Tudo bem que o enclausuramento é de apenas 2 minutos, mas para um claustrofóbico isso é uma eternidade!



A tarde parece mais normalizada até que se percebe que os cartões de crédito não foram pagos, o que ocasionará multas e juros. Após vários suspiros enraivedecidos, a aparente calmaria: o dia de trabalho está terminado.



Na volta para casa acontece o mesmo ritual: trânsito engarrafado, rádio do carro resolve não funcionar. Para-se num posto de gasolina para abastecer, não aceitam cheque e os cartões de débito não funcionam. Só resta deixar o carro ali e ir até um mercado que tem caixa eletrônico. Imagine a cena: uma poça, um carro passa e de novo se é molhado. Fila quilométrica no caixa eletrônico: na sua vez falta dinheiro. A única alternativa é voltar ao posto e negociar.



A odisséia continua: trânsito, sinal vermelho à frente. Finalmente chega-se em casa e o seu fiel amigo além de sorrir latindo, resolve forçá-lo a um cooper: sai desenfreado rua afora. Muito tempo depois, finalmente se consegue adentrar o lar-doce-lar, é então que se lembra que embora tenha passado próximo ao mercado, esqueceu de comprar o café e ao ir tomar um relaxante banho, lembra que também não comprou o chuveiro. Aterrozido com a idéia de sair e do que pode ainda lhe acontecer nesse dia, resolve tomar um banho frio mesmo e dormir. Antes dá uma ligadinha para uma amiga para ouvir um boa-noite .



--E você Maria, tudo bem, teve um bom-dia?"



Respondi que lamentava, mas ele tinha discado para um outro número. Ele,com um suspiro entre o aliviado e decepcionado, pediu-me desculpas e desejou uma boa noite. Eu, sonolenta, enquanto abaixava o telefone, ouvi ainda um obrigado por eu tê-lo ouvido e não desligado o telefone. No outro dia acordei com uma vaga lembrança dessa história. Pode até ter sido um sonho, pode até não ter sido um bom-dia, mas lendo assim, até que é uma boa crônica, não?


texto Publicado no JORNAL OPÇÂO DE GUARULHOS, 2003

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