Edição 2747 - 20 de Dezembro de 2013 a 10 de Janeiro de 2014
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Apresentarei, marcadamente nesta crônica, dois elementos
discursivos: a intertextualidade, proposta já no título, alusão à música de
Geraldo Vandré (como também na evocação de crônicas publicadas aqui por mim e
pela professora Daniella Barbosa), e a digressão.
Fuga do tema no início da crônica? Você, caro leitor, deve
estar pensando que há outro item implícito a ser discutido: “(in)coerência”.
Não há, é que nas duas últimas crônicas prometi retomar, na sequência, os temas
“internet”, “cartas”, “a importância da língua portuguesa no contexto
profissional”, mas não os retomarei ainda: eis minha primeira digressão nesta
crônica.
Muitos escritores textualizam em suas produções: “a
literatura inspira a vida e a vida inspira a literatura”. Às vezes parece que
as personagens ganham vida própria e escrevem o enredo. Alguns livros como Um sopro de vida, de Clarice Lispector; Quem eu?. de José Paulo Paes, e
mesmo o poema Autopsicografia, de
Fernando Pessoa, entre outros, marcaram minha trajetória de leitora
por tematizarem o processo de criação e a intersecção do que é real ou ficção.
Bom, mas afinal - você deve estar me questionando - qual será o tema
desta crônica? Passemos a ele, passemos à minha inspiração.
Devido ao fim de ano, é comum que façamos uma reflexão sobre
a nossa vida e uma metáfora constante nos discursos é “colheita”. Como
admiradora de textos alegóricos como as fábulas, apólogos, parábolas, tenho
sempre me lembrado da Parábola do
semeador. Associada ao contexto religioso, a colheita pode metaforizar a
própria vida. Entre várias leituras possíveis, faço uma: o ser humano como
semeador deve sim semear boas sementes, mas não quer dizer, por acreditarmos
que estamos fazendo boas semeaduras, que a colheita será boa. Como criamos
muitas expectativas nas diversas relações humanas, essa parábola isenta-nos da
cobrança, pois o solo é o outro, e cada um terá uma recepção diferente. Por
isso em uma relação recíproca com a vida, as perguntas deveriam ser: “Que
semeador tenho sido?” ,“Que sementes tenho jogado?”, “Que solo tenho sido?”. Adoro os quiasmos (segundo o dicionário Houaiss, “disposição cruzada da ordem
das partes simétricas de duas frases, de modo que formem uma antítese ou um
paralelo”) e as relações entre um pensamento e outro, por isso cito aqui uma
construção constantemente repetida: “Que mundo temos deixado para os filhos?
Que filhos temos deixado para o mundo?”
Quero um mundo melhor? O
que tenho feito para torná-lo melhor? Às vezes temos grandes planos, obras
homéricas, mas muitas vezes são as pequenas ações do cotidiano que podem
ocasionar mudanças. Por isso, pensando no tema “semeadura”, de forma
metafórica, literal e literária, penso numa moradora da rua Monte Frio, que há
anos tem florido nosso bairro. Poderia usar uma expressão alegórica para
resumir sua ação: “um trabalho de formiguinha!”, mas prefiro parodiar: “É um
trabalho de abelha, de beija-flor... ou de jardineira!”. Marlene das flores,
quantas árvores não forem plantadas por ela? Quantas flores ela semeou? Muitos,
envolvidos pela ação dela, passaram a cuidar do seu jardim.
Outro dia
assistindo à série Verdejando, da
Rede Globo, conscientizei-me de alguns
privilégios e ironias, na Vila Natal, bairro cujas ruas têm nome de flores, há
poucas árvores frutíferas. Porém, geograficamente considerando, nós moradores
de Interlagos temos sorte de estarmos em um ambiente visualmente cercado pelas
represas e pela mata ciliar. Mas, reiterando, o que cada um de nós tem
semeado? Queremos um mundo verde, mas
somos incapazes de aceitar que em nosso quintal tenha terra, para não sujar a
nossa casa. Queremos mesmo um mundo florido, metafórica e literalmente? Então, imbuídos do sentimento de Natal e da
possibilidade de recomeço pelo novo ano, semeemos... para que a vida - como sugere outra música, de Milton Nascimento - “nos dê flores e frutos!”