sexta-feira, 20 de dezembro de 2013

Crônica PARA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI DAS FLORES

 
Edição 2747 - 20 de Dezembro de 2013 a 10 de Janeiro de 2014

Apresentarei, marcadamente nesta crônica, dois elementos discursivos: a intertextualidade, proposta já no título, alusão à música de Geraldo Vandré (como também na evocação de crônicas publicadas aqui por mim e pela professora Daniella Barbosa), e a digressão.
Fuga do tema no início da crônica? Você, caro leitor, deve estar pensando que há outro item implícito a ser discutido: “(in)coerência”. Não há, é que nas duas últimas crônicas prometi retomar, na sequência, os temas “internet”, “cartas”, “a importância da língua portuguesa no contexto profissional”, mas não os retomarei ainda: eis minha primeira digressão nesta crônica.
Muitos escritores textualizam em suas produções: “a literatura inspira a vida e a vida inspira a literatura”. Às vezes parece que as personagens ganham vida própria e escrevem o enredo. Alguns livros como Um sopro de vida, de Clarice Lispector; Quem eu?. de José Paulo Paes, e mesmo o poema Autopsicografia, de Fernando Pessoa, entre outros, marcaram minha trajetória de leitora por tematizarem o processo de criação e a intersecção do que é real ou ficção. Bom, mas afinal - você deve estar me questionando - qual será o tema desta crônica? Passemos a ele, passemos à minha inspiração.
Devido ao fim de ano, é comum que façamos uma reflexão sobre a nossa vida e uma metáfora constante nos discursos é “colheita”. Como admiradora de textos alegóricos como as fábulas, apólogos, parábolas, tenho sempre me lembrado da Parábola do semeador. Associada ao contexto religioso, a colheita pode metaforizar a própria vida. Entre várias leituras possíveis, faço uma: o ser humano como semeador deve sim semear boas sementes, mas não quer dizer, por acreditarmos que estamos fazendo boas semeaduras, que a colheita será boa. Como criamos muitas expectativas nas diversas relações humanas, essa parábola isenta-nos da cobrança, pois o solo é o outro, e cada um terá uma recepção diferente. Por isso em uma relação recíproca com a vida, as perguntas deveriam ser: “Que semeador tenho sido?” ,“Que sementes tenho jogado?”,  “Que solo tenho sido?”.  Adoro os quiasmos (segundo o dicionário Houaiss, “disposição cruzada da ordem das partes simétricas de duas frases, de modo que formem uma antítese ou um paralelo”) e as relações entre um pensamento e outro, por isso cito aqui uma construção constantemente repetida: “Que mundo temos deixado para os filhos? Que filhos temos deixado para o mundo?”
Quero um mundo melhor? O que tenho feito para torná-lo melhor? Às vezes temos grandes planos, obras homéricas, mas muitas vezes são as pequenas ações do cotidiano que podem ocasionar mudanças. Por isso, pensando no tema “semeadura”, de forma metafórica, literal e literária, penso numa moradora da rua Monte Frio, que há anos tem florido nosso bairro. Poderia usar uma expressão alegórica para resumir sua ação: “um trabalho de formiguinha!”, mas prefiro parodiar: “É um trabalho de abelha, de beija-flor... ou de jardineira!”. Marlene das flores, quantas árvores não forem plantadas por ela? Quantas flores ela semeou? Muitos, envolvidos pela ação dela, passaram a cuidar do seu jardim.
Outro dia assistindo à série Verdejando, da Rede Globo,  conscientizei-me de alguns privilégios e ironias, na Vila Natal, bairro cujas ruas têm nome de flores, há poucas árvores frutíferas. Porém, geograficamente considerando, nós moradores de Interlagos temos sorte de estarmos em um ambiente visualmente cercado pelas represas e pela mata ciliar. Mas, reiterando, o que cada um de nós tem semeado?  Queremos um mundo verde, mas somos incapazes de aceitar que em nosso quintal tenha terra, para não sujar a nossa casa. Queremos mesmo um mundo florido, metafórica e literalmente? Então, imbuídos do sentimento de Natal e da possibilidade de recomeço pelo novo ano, semeemos... para que a vida - como sugere outra música, de Milton Nascimento - “nos dê flores e frutos!”

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